Esse texto pretende apresentar minha experiência e percepção sobre Ubuntu a partir da minha trajetória pessoal e da minha participação na comunidade de mulheres negras evangélicas no Brasil.
Eu sou Vanessa Barboza, tenho 32 anos, nasci na cidade de Recife (no estado de Pernambuco, na região nordeste do Brasil), sou mulher negra (afro indígena), de origem popular e família com escassos recursos materiais, e estou migrante em meu país, pois atualmente estou morando na cidade de São Paulo por motivos de oportunidade de trabalho. Eu fui uma das primeiras mulheres da minha família extensa a entrar na universidade pública. Hoje, minha profissão é de Assistente Social, seguida de uma pós-graduação em Assistência Social e também do mestrado em Educação, Culturas e Identidades.
Desde minha infância estudei em escola pública e minha família foi beneficiária de programas de transferência de renda promovidas por política públicas. Foi durante a minha infância que tive minhas primeiras experiências religiosas, quando minha família participava dos cultos das religiões de matrizes africanas-indígenas e cristãs católicas. Nesse contexto, confessei a Jesus como meu salvador em uma comunidade protestante pentecostal quando tinha 11 anos de idade. E, a partir dos 16 anos, comecei a servir em diaconia na ação social na igreja. Aos 17 anos fiz um curso básico de teologia mas nunca dei sequência formal aos estudos teológicos, entretanto, escolhi minha profissão muito alinhada a essa experiência de serviço comunitário.
Após formada profissionalmente, me envolvi com o ministério de assistência social às mulheres desde o ano de 2013 e, entre 2016 e 2019 atuei como assessora do projeto Escola de Fé e Política Pastor Martin Luther King na minha cidade natal, na Igreja Batista em Coqueiral (IBC) onde lecionei sobre participação social, direitos sociais, democracia e advocacy para a formação de lideranças da igreja e da comunidade como um todo. Os caminhos da fé e do serviço comunitário, e também minhas experiências de mulher negra pobre me levaram a um engajamento social em que minha fé fosse expressa na luta pela dignidade de todas as pessoas. Atualmente sou facilitadora e articuladora na promoção da justiça de gênero e equidade racial para a população negra brasileira no protestantismo brasileiro, desenvolvendo atividades de liderança na Rede de Mulheres Negras Evangélicas do Brasil.
Como frutos iniciais dessa caminhada, em 2019 eu fui premiada com a participação no Programa de Aceleração Feminina Negra Marielle Franco, da ONG Fundo Baobá para a equidade racial com o incentivo de organizações internacionais como a Ford Foundation e a OpenSocity. Eu fui uma das 60 lideranças em âmbito nacional a receber o prêmio e por reconhecimento ao meu trabalho junto a defesa de direitos humanos das pessoas negras no campo evangélico. Além disso, a partir deste ano, estou participando do Programa Indivíduos Inspirados, que é um fellhowship direcionado a lideranças cristãs envolvidas com trabalhos humanitários relevantes.
E eu tenho certeza que essas conquistas sociais são parte de um legado coletivo e feminino de resistência, resiliência e amor que me atravessam como ser no mundo e mulher africana na diáspora. Bem nisso que me faz recordar da primeira vez que eu conheci o conceito de Ubuntu foi através de minha professora universitária que também é uma mulher negra e cristã, a doutora Valdenice Raimundo. Ela foi facilitadora de um curso de curta duração em um evento que eu organizei para mulheres evangélicas e feministas em 2016, o seminário chamado “Discurso Religioso e Violência contra a Mulher”. Valdenice nos apresentou o conceito de Ubuntu como um legado e construção ancestral. De lá para cá, eu tenho vivido um processo consciente e profundo de resgate de memória ancestral, através da escuta ativa das mais velhas, do auto conhecimento e reparação em auto amor, na minha missão junto à comunidade feminina negra brasileira que está engajada no compromisso da luta antirracista. Foi no círculo das mulheres negras, com as mais velhas e as mais novas, onde aprendi a reconhecer minha humanidade – furtada pelo sequestro transatlântico – e a humanidade de minhas irmãs e irmãos. Por isso, para mim, Ubuntu se relacionada a unidade da essência humana que há em cada pessoa e respeito à diversidade de quem somos, comunitariamente. Tenho buscado viver o Ubuntu na minha devoção diária entre minhas irmãs negras cristãs e não cristãs, pois nossa espiritualidade é transcendente.
Ao ver e ouvir a conferência Sankofa, no que me foi possível compreender e apreciar por conta da diferença linguística, senti minha espiritualidade ser conectada e fortalecida em tudo que eu já tenho visto e ouvido no Espírito Santo, pois, ser uma mulher negra brasileira é ter sofrido com o apagamento e silenciamento social da minha história real africana e indígena. No Brasil, o falso mito da democracia racial esconde nossas raízes africanas como o esforço de exterminar nossa dignidade. Por isso, eu compreendo que a manutenção de nossa memória ancestral é um caminho para a reparação dos espíritos dos nossos ancestrais, das cerca de 55 milhões de pessoas africanas dispersas no tráfico transatlântico, fomos o roubados não só em nossos corpos mais em nossas tradições, nossa língua, nossa cor, e sobre quem nós somos em nossas almas, em nossa humanidade. Ser uma mulher negra brasileira em busca das raízes da minha ancestralidade me proporciona a reparação para meus ancestrais também.
Assim como minha avó Rosa Amaro me ensinou sobre o cuidado com as plantas, com a natureza e a terra, e me contou como escapou da exploração nas plantações de cana de açúcar para buscar sua dignidade, eu sou sua descendência. Assim como sou descendência e me conecto com a história de Agar(em seu retorno ao Egito após as injustiças perpetradas pro Abraão) e da Mulher Samaritana (que no encontro com Jesus defende sua origem e as relações entre povos que estavam irreconciliáveis).
Ainda na conferência Sankofa, a voz e a fala da irmã Lisa Happer sobre os círculos de histórias das mulheres, me faz recordar que foi a partir dessa iniciativa que eu encontrei o legado sendo passado a mim pelas irmãs negras brasileiras que já estavam em contato com suas raízes ancestrais africanas de modo contínuo e intenso. Os círculos das mulheres com histórias do coração promovem processos de autoconhecimento e cura coletiva, e de humanização de nossas imagem. Nesse processo a conexão intergeracional é essencial para a minha reconexão com minhas raízes africanas, ou seja, numa perspectiva afrocentrada a valorização das experiências em memórias das mais velhas me permitem enxergar o que antes me foi obscurecido: minha essência humana e plenamente à imagem de Deus, merecedora de amor incondicional.
Na transmissão do webinar Pan African Women of Faith: Episode IV: Reimaging the Future, Pt. I As palavras da irmã Marília Schuller, como sábia mais velha, resgata a interseccionalidade, no âmbito da diaconia e hermêutica bíblica, como uma chave importante para esse processo de libertação de nossas mentes ante o colonialismo religioso, e um encontro de unidade dentro da diversidade. É poderoso como nosso compromisso transcende nossa comunidade de fé de base, mas, alcança nosso compromisso de serviço com nossos ancestrais. Eu acredito que a iniciativas coletivas como a RMNE e a PAW estabelecem conexões poderosas entre mulheres que trocam e transferem o legado de histórias ancestrais africanas (e do coração) que são reveladoras de nossas identidades coletivas. O Brasil é um país de dimensões continentais e a população negra de descendentes africanos é a segunda maior do mundo fora de África. População que sofreu sistematicamente com o projeto eugenista de extermínio da negritude para a formação de um país, mestiço embranquecido. Possuímos muitas histórias de resistência e perseverança que nos permitem florescer na luta por quem nós somos até agora. Mesmo no Brasil, há diversidades regionais ampliam as dimensões de ser humanas em nossa identidade africana na diáspora. Nos reinventamos em liberdade porque honramos nossas raízes. Essas experiências nos ajudam a atualizar nossa espiritualidade através da interseccionalidade de saberes e acontecimentos do presente e do passado e nos ensinam a superar os grilhões da colonialidade do ser e do saber. Como disse a Marília, a história da nossa comunidade de fé é também a nossa história enquanto povo negro em diáspora. Quando estabelecemos essas conexões de saberes de modo interseccional promovemos o empoderamento e autonomia de pensamento e fala que nos permitem honrar a história ancestral e desconstruir as profundas marcas do racismo em nossa tradição ocidental cristã que promove o apagamento sistêmico de nossa identidade africana. Isso é de fato revolucionário e libertador para o povo negro no mundo todo e aqui no Brasil também.
Por fim, nesse momento, meu sonho para o futuro das mulheres Africanas e descendentes se encontra na confluência de desejos para que sejamos plenas em nossa humanidade, memórias e diversidade, em comunhão coletiva. Que possamos utilizar as ferramentas de comunicação global para nos aproximar mais e permitir o acesso à mais históricas encarnadas de mulheres africanas espalhadas pelo mundo. Que o Espírito de Ruah nos auxilie a utilizar as ferramentas da verdade através do diálogo coletivo amoroso e comprometido com nossa ancestralidade alcance níveis de empoderamento individual e coletivo que nos restabeleça a plenitude de nosso ser à imagem de Deus, como Ele nos criou. Que possamos desfrutar de uma postura amorosa uns com os outros.
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