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  • Foto do escritorNegras Evangélicas

A Cara da Fome é uma Mulher Negra


A reflexão que motivou esse texto teve início dentro de um supermercado enquanto fazia o que chamamos de compras do mês. Me pergunte sobre uma das coisas que menos gosto de fazer na vida e te responderei: ir ao mercado; me pergunte sobre uma das coisas que mais sou grata em poder fazer e te responderei: ir ao mercado. Atravessamos tempos tão difíceis que poder ir ao mercado, ainda que seja cansativo, tem sido uma dádiva, com a alta dos preços pensar em poder se alimentar minimamente já é reconfortante tanto quanto gratificante.


A alta dos preços, o grande número de desempregados e o aumento da vulnerabilidade não permite mais que muitas famílias se alimentem adequadamente – algumas nem podem se alimentar. O que iniciou com a substituição de itens preferenciais de algumas famílias por outros subitens, se transformou na ausência - primeiro a substituição, em seguida a falta. Essa é uma realidade em cerca de 30% dos lares brasileiros, cerca de 33 milhões de pessoas, afetados por quatro anos de uma política econômica neoliberal, de encolhimento e sucateamento do Estado, extremamente nociva às populações mais vulneráveis. Essa política não só aumentou os níveis de vulnerabilidade de milhares de núcleos familiares, como levou a uma situação de risco social a centenas de outras. Dados do CadÚnico em 2020 apontaram para o aumento de famílias em situação de extrema pobreza, chegando a aproximadamente 2 milhões, o que levou o Brasil de volta ao mapa da fome no mundo.


Importa dizer também que comprar comida não garante outro fator de extrema importância: a segurança alimentar. Quantas famílias dispõem de condições para se alimentar corretamente? A tabela nutricional é contemplada nas nossas refeições? Quanto de saúde conseguimos levar pra casa nos nossos alimentos repletos de agrotóxicos? Recordo da fala da Ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, a esse respeito quando afirma que:


“Faz parte da minha vida uma situação de insegurança alimentar. Aos dez anos de idade eu não sabia os conceitos técnicos, só vivia os dilemas na própria carne. Eu só comia macaxeira com molho de pimenta malagueta e garapa. Do ponto de vista técnico, minhas irmãs e eu estávamos de estômago cheio, ou de bucho cheio, como as pessoas costumam tratar dos pobres. Mas nós estávamos numa situação de fome."


O conceito de segurança alimentar surgiu no pós guerra e fazia referência a capacidade de produção de alimento que fosse suficiente para sua população de modo que garantisse sua segurança. No entanto, ao longo dos anos ele foi ampliado e não se refere mais apenas a capacidade de suprir uma nação com alimentos, mas sobretudo a qualidade nutricional que seja capaz de suprir as necessidades do indivíduo de forma regular, com qualidade e em quantidade suficiente. Observadas essas definições é possível compreender a fala da Min. anteriormente citada, o que não foi um “desprivilégio” vivenciado por sua família apenas, mas trata-se da realidade de muitas famílias no Brasil.


Não pode-se considerar a insegurança alimentar como um fenômeno isolado e estanque, suas causas são diversas e estão relacionadas a fatores como os que introduziram essa leitura: alta dos preços e condições de pobreza, o que fala diretamente das desigualdades socioeconômicas e da pobreza estrutural resultante de um processo de colonização pautado no trabalho escravo e em níveis de desigualdades extremas que ainda não foram totalmente superadas. A época da colonização a maioria das pessoas vivia em condições de pobreza e miséria, o que era ainda mais acentuado quando nos referimos a situação de vida dos negros escravizados, mesmo após a abolição.


Nesta condição de pobreza estrutural que se perpetua ao longo de séculos que fortalece a insegurança alimentar no nosso país, uma vez que pobreza e insegurança alimentar são uma questão de Direitos Humanos, considerando que a alimentação é uma condição fundamental para a existência e condição inalienável dos povos consagrada e protegida pela Declaração Universal dos Direitos Humanos. A esse respeito podemos dizer que os direitos expressos por esta declaração devem ser garantidos a toda e qualquer pessoa no mundo, no entanto a realidade se expressa de forma bem diferente, o que faz com que grupos historicamente mais vulneráveis sofram maiores violações e discriminações.


Considerando que a estrutura machista do nosso país afeta diretamente a vida das mulheres, as violações tomam outros contornos quando o gênero é interseccionado com classe e raça; nesse sentido as violações impostas às mulheres negras são as mais diversas, se acirram pelo racismo estrutural e chegam também a nossa mesa.


Mulheres negras historicamente lideram o grupo mais prejudicado do país, ocupando lugares entre as que abandonam os estudos precocemente, ocupam profissões mais subalternizadas e têm vínculos empregatícios precarizados. No Brasil, a maioria dos domicílios é chefiada por mulheres, segundo dados do boletim do DIEESE – sigla, no segundo trimestre de 2022, dos 75 milhões de lares, 50,8% eram chefiados por mulheres e deste total as mulheres negras chefiavam 21,5 milhões de lares, deste total 63% estão abaixo da linha da pobreza, ou seja, vivem com aproximadamente R$ 420, mensais.


O 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, lançado no começo do ano, apontou que 58,7% da população brasileira convive com insegurança alimentar em algum grau – leve, moderado ou grave (fome). Mas este percentual sobe para 63% dos domicílios chefiados por mulheres – 19,3% em situação de fome. Vale o mesmo quando o recorte é a cor da pele: 64% dos domicílios com pessoas de referências pretas ou pardas sofrem com insegurança alimentar; 18,1% passam fome. “A pesquisa prova o que a gente vê: a cara da fome é uma mulher negra”, afirmou Selma Glória, coordenadora do Programa de Gênero, Geração e Igualdade Racial do MOC (Movimento de Organização Comunitária), na região semiárida da Bahia, em debate no Encontro Nacional contra a Fome (21/06).





Pretta Gonçalves é Mulher Negra; Mãe; Assistente Social; Ativista pelos direitos das mulheres; Presidente do Conselho Municipal dos Direitos das Mulheres em Seropédica; Subsecretária de Assistência Social em Seropédica.






Equipe

Escrita de projeto: Débora Oliveira e Vanessa Barboza | Gestão de projeto: Débora Oliveira | Revisão de textos: Carla Ribeiro | Identidade visual e designer: Carolina Barreto | Copywriter: Rafaelle Silva | Site: Anicely Santos e Débora Oliveira | Apoio: CESE - Coordenadoria Ecumênica de Serviço | Realização: Rede de Mulheres Negras Evangélicas



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